terça-feira, 27 de maio de 2008

Viver é Combater


Aquela exortação do pai orgulhoso a um filho que parte para a guerra continha a essência dos objetivos de um nobre, de um fidalgo: devotar-se na busca da excelência, sobrelevar-se, tornar-se alguém memorável. Todo o Código do Cavaleiro que por séculos iria orientar a aristocracia helênica baseava-se pois apenas nisso: a obrigação de tentar ser alguém extraordinário, inesquecível, cuja fama correria o mundo. Nada mais podia vir a interessar um autêntico guerreiro, que para tanto devia ser provido de thymos, o ânimo, impulso que dará início a sua legenda. Tal como um tablado serve para um ator expor seu histrionismo, o campo de batalha serve como um amplo teatro onde, aos olhos dos demais valentes, ele demonstra suas habilidades e virtudes excepcionais; corajoso na refrega, magnânimo na vitória. O teste definitivo se dava em meio aos gritos lancinantes dos feridos, ao cheiro forte do sangue derramado, do relinchar selvagem dos corcéis, da gritaria geral de fúria, de horror ou de êxtase da soldadesca em meio ao Campo de Marte. O confronto singular era, por assim dizer, o exercício obrigatório que ele devia cumprir na conquista da areté. Viver é Combater!
Ressalte-se que a pugna somente merecerá o registro, só ficará na história e no canto do rapsodo, se ela se der entre os da mesma estirpe: um nobre de linhagem, de sangue aristocrático. É entre leões que se dá a embate. Só um deles merecerá os louros sagrados da vitória. Nenhum valor lhes seria acrescentado à fama enfiar uma lança num peito plebeu, gastar o fio da lâmina num infante qualquer, num anônimo que ninguém sabe de onde veio. Entre os tantos encontros na arena relatados por Homero ao longo da Ilíada (os que envolvem morte e ferimentos são mais de 140 registros, descritos um a um pelo gênio poético dele), merece a atenção o de Glauco (um jovem guerreiro lício.filho de Anfilioques, que lutava do lado troiano) com o enfurecido Diomedes (filho de Tideo, um espadachim terrível que veio junto com os gregos, e que além da ferocidade natural era protegido pela deusa Atena). Um pouco antes de chocarem suas carruagens, Glauco responde à indagação do rival sobre sua linhagem: expõe então ao inimigo em detalhes de como ele descendia de casa ilustre, como corria sangue puro em suas veias, herdado do sábio Belerofonte, o quanto ele se qualificava para aquele duelo mortal. Um bravo mais do que merecedor de estar ali na liça provocando o famoso Diomedes. (*)
(*) ...se queres ser bem informado acerca do meu nascimento, há uma cidade, Efira, num recanto de Argos, onde se criam cavalos, e ali foi a morada de Sísifo.....Hipoloco foi meu pai. Mandou-me a Tróia e recomendou-me muitas vezes que me destacasse e sobrepujasse os demais, e não envergonhasse a raça do meu pai, a mais valente em Efira e na vasta Lícia. Desta raça e deste sangue eu me orgulho de ser."(Diomedes então, reconhecendo que fora amigo daquela família, confraternizando com Glauco, propõe que eles apertem as mãos e façam uma trégua entre eles)[Canto VI da Ilíada].

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